30 de setembro de 2015

«A família é pouco eclesial e as comunidades paroquiais pouco familiares»


O presidente do Conselho Pontifício para a Família, D. Vincenzo Paglia, acha que as comunidades fazem pouco para receber as famílias e as famílias pouco se interessam em se integrar na vida das comunidades paroquiais. Usando como exemplo o Evangelho de Lucas, o prelado explica que a melhor forma de levar a misericórdia aos outros é através da família. Tudo no seu novo livro "Uma casa rica de misericórdia", editado pela PAULUS Editora.


O que o levou a relacionar o Evangelho de Lucas com a Família e a Misericórdia?
Como sabe, o Evangelho de S. Lucas é chamado o Evangelho da Misericórdia pelas muitas passagens que mostram precisamente o amor visceral, misericordioso, apaixonado de Deus pelas suas criaturas. Emblemático de tudo isto é aquela parte das famosas três parábolas, precisamente da misericórdia, a que depois se segue a do bom samaritano. Neste contexto, a família inscreve-se num modo extraordinariamente eficaz, seja porque S. Lucas é o único evangelista que apresenta nos dois capítulos do Evangelho da infância de Jesus a família de Nazaré, mas também porque nas páginas de Lucas muitas vezes se fala de Jesus, embora também isto suceda nos outros evangelhos, como membro de uma família. Um exemplo, que vale para tudo, é a relação tão relevante e afetuosa de Jesus com a família de Lázaro, de Marta e de Maria. Por esta razão, pareceu-me bem que o Sínodo da Família, que de algum modo abre o Ano da Misericórdia, pudesse encontrar, precisamente, neste pequeno instrumento do Evangelho de S. Lucas comentado, uma oportunidade para todas as nossas famílias. Porque a misericórdia certamente faz parte essencial da vida, não só da família cristã, mas espero que de todas as famílias humanas.

A família é a base de toda a educação, incluindo a religiosa. É por isso que é tão necessário que a família se mantenha estruturada? 
Ninguém duvidará de que hoje a crise na qual a família se sente se encontra ligada também a uma aceleração de uma cultura secularizada que se afasta da fé. Numa humanidade em que a família se priva da dimensão religiosa, a família cansa-se de viver. E de certa forma encontra ainda maiores dificuldades na educação. É por isso que o Evangelho de S. Lucas, perspetivando a escolha que o próprio Deus fez para educar o seu Filho, teve necessidade da família: de uma mãe como Maria, e de um pai, ainda que putativo, como S. José. E foi extraordinariamente eficaz a síntese que S. Lucas faz a dada altura quando escreve: «Jesus crescia em sabedoria, idade e graça» (Lc 2,52;40). Uma vida como esta que não era, como se disséssemos, uma decoração. Na família de Nazaré realizaram-se muitas das nossas tensões contemporâneas; como por exemplo, a relação entre Maria e S. José no início. Pensemos na fuga para o Egito. Jesus, Maria e S. José tornam-se emigrantes. E depois, pensemos na relação entre pais e Filho na perda e encontro no Templo. Por fim, uma situação de luto quando Maria está sob a Cruz; e por aí adiante. Em suma, a família é realmente o lugar de provação radical bem ativa. E lá onde isto não acontece, aí nós temos que nos encontrar a recolher as tragédias que não tiveram este processo educativo desde a infância.

Muitos pais mandam os filhos à catequese ou à eucaristia, mas ficam em casa. Qual a importância do exemplo dos pais na educação religiosa dos filhos? 
Este é um dos pontos mais importantes da vida da igreja de hoje, em minha opinião. Existe como que uma separação entre a família e a comunidade cristã. Uma fossa, que permanece quando se enviam os filhos para a paróquia. Porquê? A família é pouco eclesial e as comunidades paroquiais pouco familiares. Pelo que, uma torna-se uma espécie de recinto fechado, e a outra torna-se uma realidade funcional, exterior. Neste sentido, ouso brincar um bocadinho afirmando que, neste sentido, é indispensável que os pais levem para a comunidade os seus filhos, desde a idade do berço. Sem esta dimensão, não é possível a evangelização. A brincadeira que me vem à ideia é esta: como o filho entra como membro da família, através do aleitamento, o amor da mãe, a voz do pai e o desvelo dos avós, a evangelização torna-se possível através do odor das velas, o cheiro do incenso, a visão dos que atuam à volta do altar. Se depois é verdade que os primeiros três anos são os que constroem o âmago duma personalidade, compreende-se que de nada vale esconder uma criança desde que nasceu e apenas levá-la aos sete anos para a paróquia para a primeira Comunhão. Temos que recriar intimidade entre família e paróquia. A nós ambas nos servem.

Pede que as famílias leiam juntas o Evangelho de Lucas. Como podem elas arranjar tempo, na sociedade de hoje? 
É o desafio de «rezar sempre», como dizia Jesus. Se vivemos numa sociedade em que a pressa e o caos são de casa, «rezar sempre sem nunca nos cansarmos» significa rezar pelo menos cinco minutos por dia, juntos em família. Neste sentido, o Evangelho de S. Lucas que publicámos, nas edições Paulus em várias línguas, é um instrumento para o que chamarei a lectio divina popular ou familiar. Quando eu era bispo de Terni, uma senhora contou-me, quando então distribuía estes evangelhos nas minhas visitas às famílias da diocese, a sua alegria porque todas as noites antes da ceia liam em família um ou dois versículos do Evangelho com um comentário muito breve. E esta é uma maneira de fazer as famílias discípulas de Jesus. Em suma, aquela Maria, irmã de Marta, ensina-nos que estes cinco minutos poderão ser a «melhor parte» (Lc 10,42) dos nossos dias.


Neste ano da Misericórdia, como podem as famílias exercer essa misericórdia entre elas? 
Eu penso que este Ano de Misericórdia é um pouco como Jesus: anunciou em Nazaré um ano de graça, durante o qual a dimensão do dom, da gratuidade, deve aparecer de muitos modos nas famílias. O Papa Francisco deu-nos aquelas famosas três palavras: desculpa, por favor, obrigado! São três palavras que podem declinar-se durante o Ano da Misericórdia, ou melhor dizendo, a jornada de um Ano de Misericórdia. Claro, tudo isto se deve passar na paróquia, mas também tomá-lo como hábito de vida, na vida ordinária, no trabalho, no mercado, na rua, em todo o lado. Na verdade, trata-se de transformar a vida não apenas vivendo melhor, mas até conduzindo-a mais graciosamente. A gratuidade falta-nos muito nas nossas relações. Tudo se faz como se fosse um comércio: dou-te para que me dês; quanto custa; quanto devo gastar... Precisamos de mais atitudes graciosas, de algo mais de «grátis» nas nossas relações. E a Misericórdia entra nisto, porque Deus opera sempre graciosamente em favor de todos, especialmente em favor dos mais necessitados.

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