21 de setembro de 2015

Cardeal Patriarca quer «reorganizar a Igreja em chave familiar»



D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa, falou à Família Cristã sobre as suas expectativas antes de iniciar o Sínodo da Família, onde o prelado será um dos dois representantes dos bispos português, em conjunto com D. Antonino Dias, bispo de Portalegre e Castelo Branco.

Este Sínodo é o culminar de dois anos intensos sobre a família. Esta “estratégia”, quase de marketing, do Papa Francisco, que procurava colocar a família no centro das atenções de crentes e não crentes, resultou?
Eu creio que sim, e vou explicar porquê. Porque foi um processo eclesial propriamente dito, e um processo desses envolve o mais possível os membros da Igreja. Sendo que, esta assembleia sinodal, e é bom que se tenha isso em conta, é distinta da anterior, que era sobre os desafios à família. Esta será sobre a missão da família na Igreja e na sociedade. Será muito mais projetiva, já que não se pode dizer muito mais sobre o que se disse no ano passado, e o que saiu naquela série de proposições que foram votadas e que o Papa quis que fossem manifestas as votações que cada proposição tinha tido, até para se poder aquilatar quais os pontos em que há consenso geral e mais problemáticos, mas sobre isso haverá pouco a dizer. Agora neste contexto o que esperamos das famílias, dentro da visão cristã da família, que é aquela em que Jesus se apresenta, não nos vão pedir outra, que não somos a ONU, somos a Igreja Católica. E é bom insistir nisto, porque parece que às vezes há uma certa expetativa algo despistada. Esperam que a Igreja apresente linha de atuação da família que não tenham em conta aquilo que a define e valida como Igreja, que é a proposta que está. Naturalmente que tem de ser aprofundada, atualizada e aplicada com aquilo que é de hoje, mas que é a proposta que está.

Quais são as preocupações que a Igreja portuguesa vai levar?
Em primeiro lugar, a necessidade de preparar e acompanhar, ao longo da vida, as famílias cristãs. Levar por diante um processo matrimonial, paternal e agora com avós, à luz do Evangelho, tem de ser preparado, consciencializado, e tem de ser acompanhado. Não pode ficar reduzido a uns meses antes, em que aparece um casal que se quer casar, faz-se um curso de preparação para o matrimónio com meia dúzia, ou às vezes nem isso, e pronto, “estão casados, agora aguentem-se”, para falar mal e depressa. Não é isto. Trata-se de algo tão importante na ordem sacramental, em que o próprio Deus está incluído, que requer muita consciência, muita preparação e muito acompanhamento. Porque uma vida tem crises a ultrapassar e superar, e sozinhos é muito difícil, para não dizer impossível. A grande questão que se põe é como que nós, comunidades cristãos, vamos, nas nossas famílias, paróquias, comunidades e movimentos, preparar e apoiar o matrimónio cristão. Isto vai levar, e a minha intervenção vai ser nesse sentido, a uma reorganização da vida cristã em chave familiar.


E como se fará essa reorganização?
Isto é importante para a Igreja, que nem sempre vive assim. Mesmo em casos de militância, falamos do homem ou da mulher, mas não sabemos se é casado, se é viúvo, se tem filhos… há aqui uma relação familiar que tem de estar muito mais presente na comunidade cristã, para que ela seja, como já pedia o Papa João Paulo II, uma família de famílias, e não em termos individuais. E se a Igreja conseguir avançar para uma organização em chave familiar, isto pode ser um grande estímulo para a sociedade, que também não vive assim. A nossa sociedade vive, infelizmente, e desfaz-se mais do que se constrói, em torno de duas abstrações: o indivíduo, que é o ser sem relações, e o termo massas, que é o ser sem rosto. Reparamos que é assim na vida profissional, até na desportiva, em que se contam mais as pessoas individuais, ou as massas, mas sem entrar em linha de conta com a rede familiar.

E como é que conseguiríamos organizar a Igreja e a sociedade em chave familiar? 
Bom, começamos pela Igreja, que é aquilo que nos compete. De resto, participamos como cidadãos. No que diz respeito à Igreja… bom, pelo exemplo é mais fácil. Olhamos para uma paróquia e dizemos que tem 2 ou 3 mil praticantes dominicais, e fazemos censos e estatísticas. Não é muito mais interessante dizer “eu nesta paróquia tenho 253 famílias”? Em que a base e a estruturação, a vida sacramental, o batismo dos filhos que já provieram do matrimónio dos pais, a iniciação cristã, conta muito mais com a base familiar, do que com a abstração individual. Quantas famílias são? Mesmo que depois haja algum individual que por esta ou aquela razão não tem família, e se inclui também. E aqui toca-se um ponto doutrinal: nós somos cristãos porquê? Como todos os religiosos, acreditamos em Deus, certo. Não estamos cá por acaso nem sozinho, acreditamos que alguém nos precede e nos espera, como as pessoas de todas as religiões. Mas isto é ser religioso, no sentido de estar ligado a Deus. Mas ser cristão é outra coisa: é dentro deste fundo comum, que compartilhamos com todas as pessoas crentes, nós situamos a nossa relação com Deus na pessoa de Jesus Cristo. E eu disse pessoa, não indivíduo. Porque Jesus teve mãe, um pai adotivo, parentes que são referenciados no Evangelho, Jesus vive 30 anos em contexto familiar e de trabalho, numa terra, com vizinhos. Nós não falamos em abstrações. Quando um cristão pensa em Deus e como Deus se revela, pensa numa família, que foi a família de Nazaré, que aliás foi emigrante à força no Egito. Pensamos na carpintaria de Nazaré, naquele contexto local em que foi bem recebido umas vezes e outras não. Pensamos na sinagoga, pois Jesus era um judeu praticante e não ia à missa ao domingo, mas sim à sinagoga ao sábado. Há um contexto local, familiar, de vizinhança, que nós cristãos acreditamos que é a própria revelação de Deus. E por isso a família não é algo acessório

Mas se sabem assim tão bem, porque é que ainda não vivemos nessa chave familiar?
Temos de viver mais, temos de ser operativos e viver mais. Mas julgo que é porque ainda somos subsidiários dessas abstrações. Pensamos em indivíduos mais ou menos sem relação, ou pensamos em massas. Mas essa não é a maneira evangélica de pensar as coisas, não foi essa a Revelação cristã. E mais! Lemos os textos do Novo Testamento, que dizem respeito as primeiras comunidades cristãs, e verificamos que elas também têm chave familiar. É muito interessante ver S. Paulo dizer que batizou a casa de fulano, a família de fulano. A primeira referência de Paulo à Europa é a família da Lídia que ele encontrou e foi a sua casa. Quando Paulo fala a Timóteo, não lhe fala da fé, diz-lhe “não te esqueças da fé que recebeste da tua mãe Eunice e da tua avó Loíde”. Não podia haver igrejas, como temos agora, e a comunidade funcionava em casa deste e daquele. O casal importante de Aquila e Priscila onde funcionavam as comunidades.

Este motu proprio sobre a nulidade matrimonial vem colocar mais responsabilidade sobre os ombros dos bispos, com a criação do processo breve. Não sei se o Papa terá falado convosco sobre o motu proprio, mas o que é que ele traz de novo?
Na linha de coisas que tinham sido pedidas e insistidas na última assembleia sinodal, que se facilite o que pode ser facilitado. Atenção que o sacramento é uma coisa séria, e portanto quando de uma maneira consciente, responsável e livre um homem e uma mulher se aceitam como esposas perante Deus, nós, Igreja, não temos qualquer espécie de poder ou autoridade para interferir. Agora o que podemos e devemos é não só preparar esse momento, e daí a tal aplicação muito maior na formação para o matrimónio cristão, para as pessoas perceberem do que se trata e tenham uma base experimental onde isso possa assentar, e depois verificar se isso aconteceu assim. E é em relação a estas circunstâncias que se facilita o processo, no sentido de ser só numa instância, e de não precisar de ir a outra diocese para confirmação – sempre com o direito a apelarem os que não ficarem satisfeitos – com mais envolvimento do bispo diocesano, dispensando algumas formalidades quando os casos são muito evidentes. Tudo no sentido da verdade do que aconteceu e na respetiva verificação.

Muitos bispos não têm formação em direito canónico, mas o Papa pede que sejam eles a julgar estas situações. Não tem receio que isto possa vulgarizar a declaração de nulidade e criar quase um divórcio religioso? 
Isso, meu amigo, nisto como em todos os casos, é a consciência que cada um tem ou não tem. Se estamos a tratar de algo tão sério como a é a vida sacramental para aqueles que a querem seguir, contamos com a seriedade de consciência de quem realiza o ato sacramental e de quem o acompanha e avalia. Se faltar a esta base, em relação a isto e a tudo… vamos acreditar que tudo seja feito com seriedade, e vamos exigir essa seriedade. Se algum caso muito notório de desrespeito desta seriedade e regras, isso seria verificado e devidamente reprovado… não vejo aqui um problema maior do que noutros setores, é uma base geral de seriedade que vale aqui e vale em tudo.

Acredita que isto possa resolver parte significativa dos casos existentes de divorciados recasados, que sofrem por não poderem comungar ou confessar-se? 
Eu aí nem preciso de achar, porque se trata de verificar o número de verificação da nulidade do alegado casamento que se dão e vermos que os caso é grandíssimo. Até por uma certa experiência empírica de ouvirmos os casos e ouvirmos como é que as pessoas pretensamente se casaram. Infelizmente é assim…

Quanto aos outros, muitos dos defensores de uma maior abertura para com as pessoas em situações irregulares, têm-se socorrido de declarações do Papa em que ele pede uma maior abertura para dizer que ele vai mudar tudo. Mas acolher essas pessoas significa aceitar as suas situações? 
O acolhimento refere-se às pessoas. Cada batizado tem o seu lugar nesta casa da família dos filhos de Deus. No que diz respeito à prática sacramental, temos de entendê-la como um todo, pois os sacramentos não vivem independentes uns dos outros. Pelo Batismo entra-se em casa. Mas enfim, mesmo não estando nós em condições dessa vida sacramental plena, estamos sempre em condições para uma vida sacramental que o nosso estado de batizado nos habilita.

Não depreende, portanto, das palavras do Papa que ele está a declarar que vai aceitar essas situações irregulares dentro da Igreja? 
Com certeza que não. Não devemos fazer avaliações subjetivas, e a situação, não sendo a que propomos, é a que existe, e a pessoa está antes, durante e depois de tudo isso.

Acha possível que, dentro da doutrina, nomeadamente em casos pontuais, ou em situações em que o cônjuge é abandonado e o parceiro não deixa qualquer solução de reconciliação... 
A Igreja, em toda a sua moral e aplicação moral, inclusive na vida sacramental, já faz esse raciocínio. A proposta é o que é, a apreciação caso a caso das circunstâncias faz-se a outro nível mais pessoal e interpessoal, porque é aí que se deve fazer…

E aí é possível estabelecer diferenças para as situações que são diferentes? 
Isso com certeza.

Porque temos pessoas que nunca viverão de forma completa, ou fora da comunhão da Igreja, ou fora da alegria de uma vida familiar plena... 
Sim… trata-se de vermos como devemos conjugar cada vez melhor a verdade sacramental com a vida de cada um e as circunstâncias subjetivas e objetivas. Temos de ver tudo isso sem pôr em causa nenhum dos termos.

E adequando as coisas a cada pessoa e cada caso? 
Isso é o que já acontece, e quem está dentro da igreja sabe que é isso que se faz.



Outra das questões que tem sido debatida foi a necessidade de melhorar a preparação para o matrimónio, e promover o acompanhamento posterior dos casais. Uma preparação mais exigente, e mais espaçada no tempo, é necessária? 
 Isso já está dito, até por João Paulo II, que dizia que a preparação para o matrimónio começa na casa dos pais e na catequese. Porque isto trata-se da educação para uma vida em função do outro, e isto é uma educação longa, que começa em casa, com a noção de que há o menino, mas há a menina, a avó, o parente que está doente e precisa de atenção, a refeição que aparece na mesa mas que é preciso colaborar. Coisas tão simples que vão educando no sentido da atenção ao outro, uma dai que está descentrada em si e centrada em Deus e nos outros que mais precisam. E essa é a grande preparação para uma comunhão real e de compromisso como é o caso do compromisso matrimonial. A preparação significa uma preparação para viver não a seu bel-prazer, mas em função dos outros.

Mas muitos casais que chegam à preparação imediata não vêm nessas condições… Deve essa preparação imediata ser mais exigente no sentido de acompanhar os casais?
Tornar as coisas claras, para os casais saberem ao que se estão a comprometer, sacramentalmente, envolvendo o próprio Deus nesse ato, com certeza. Agora estas são as disposições gerais, e depois temos o caso a caso, em que há pessoas que aprendem mais depressa que outras. Há uma meta a atingir, mas depois temos de ver caso a caso.

Mas há paróquias que têm apenas um encontro, ou nenhum, e depois…
E depois, o depois é que é importante. Saber como se sustenta a vida matrimonial. Por exemplo, há bocadinho, quando falávamos da reorganização comunitária em chave familiar. Nós reparamos que muitas das nossas celebrações dão uma importância muito grande ao sufrágio dos defuntos, “missa por alma”, como se diz. Damos igual relevo às comemorações matrimoniais? “hoje é o aniversário deste e daquele casal na nossa paróquia”, fazemos isto? E nem precisamos de esperar pelos 25 anos, fazem dois, fazem três… damos suficiente relevo ao compromisso matrimonial na nossa vida paroquial? É algo que parece simples, mas é muito importante. Eu conheço párocos que, todos os anos, tendo as direções dos casais, enviam uma felicitação a quem faz anos de matrimónio. Coisas simples mas que dão à vida matrimonial um acompanhamento e uma atenção como deve ser.

Um acompanhamento da comunidade… 
Da comunidade, precisamente, comunitário. Há tentativas nesse sentido, mas ainda falta muito. Qual é o lugar que nós damos à celebração do batismo que insere na família dos filhos de Deus aquela criança que os pais trazem à comunidade? Vemos isso com gosto, a nossa família cristã a crescer? A mesma coisa para os avós, que dão à comunidade cristã uma atenção prioritária e permanente ao primeiro núcleo que é o da igreja doméstica. Manter constantemente a referência matrimonial e familiar no âmago da comunidade cristã. Da família igreja doméstica à família dos filhos de Deus.

Coincidência ou não, começam a aparecer medidas mais efetivas de apoio à natalidade em Portugal, e este ano o número de nascimentos parece estar em curva ascendente, como não se via há uns anos. Estamos a preocupar-nos mais com a família? 
Um movimento no qual devemos estar todos atentos e ativos. O matrimónio, mesmo que não seja sacramental, não é um exclusivo cristão. Nós colocamos a pessoa de Jesus Cristo no seu centro. Paulo diz que quem casa, casa-se no Senhor, e isto tem uma envolvência. Há muita inspiração cristã na sociedade portuguesa, e esse é um dos pontos em que fazemos o reconhecimento feliz que há incidência. O Patriarcado está também a viver um tempo sinodal.

De que forma pode o Sínodo de Lisboa ser enriquecido pelo Sínodo de Roma? 
Bom, isso só saberei no final do sínodo em Roma (risos). Mas quase que adianto que, estando este caminho sinodal de Lisboa a refletir sobre as variadas reflexões do Papa Francisco na Evangelii Gaudium, está a fazê-lo projetando-se para o futuro. Esse futuro passará certamente por este revigoramente comunitário, esse revigoramento comunitário passará certamente pela presença mais forte das famílias nas nossa comunidades cristãs, e aí conjugam-se muito as duas coisas.

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